Rescaldo rápido da volta de ontem:
Como estou parado em termos de estrada há quase 3 semanas e as últimas duas semanas têm sido de uma gestão psicológica complicada, tinha de desaparecer por umas horas para colocar as ideias no lugar, como sempre a solo.
Não tinha muito tempo, sendo imperativo que voltasse a tempo de almoçar, o que limitava um pouco o raio de acção.
Tinha, por isso, na ideia fazer no máximo 120Km, com o imperativo de ter de incluir algo que ainda não conhecesse. Sou capaz de ter repetido 2 voltas longas exactamente da mesma forma no último ano, e pretendo continuar com esta descoberta de mais e mais lugares novos. Daí as longas batalhas com o mapa, na procura da "tal estrada".
Por isso debrucei-me no mapa, já a noite ia longa e terminei já passava das 3 da manhã! Ainda ensaiei um percurso de 140Km para os lados de Arouca (e que já está ali na pasta dos "a fazer rapidamente") mas para o dia de hoje teria de ser algo mais contido.
Não há muitas opções dentro destas quilometragens que ainda não tenha feito, ou que tenha especial vontade de fazer. Como precisava de sossego e de isolamento e isso só se consegue, aqui à mão, em Castelo de Paiva, foi para lá que direccionei a minha atenção.
Já conheço grande parte das principais estradas municipais principais (numeradas a 3 dígitos) do lado Oeste mas faltava ainda um pequeno troço que começa em Oliveira do Adra e acaba pouco depois de Guirela, na rotunda que também cruzei há uns tempos para chegar à maravilhosa estrada de Paraíso e uns tempos depois para o lado Este, em direcção a Arouca. Este troço que hoje fiz representa praticamente metade da M503.
Assim, os restantes 110Km da volta, foram um mero instrumento para me levar a conhecer 9300m de asfalto novo, e que eu esperava que fosse de elevado interesse.
O dia amanheceu preocupantemente chuvoso. Apesar de já estar pronto e ter tudo preparado, ainda equacionei trocar para o BTT, mas decidi esperar mais meia hora para ver como as coisas evoluíam. Assim, acabou por se revelar uma decisão acertada já que a chuva parou. Havia agora que ter cuidado redobrado com a estrada molhada e ainda fiz umas caretas ao ver enormes películas de óleo no asfalto. Felizmente em Recarei a estrada já estava praticamente seca e permitiu algum sossego na postura bastante defensiva que adoptei até então.
Como não queria repetir o caminho de ida e de volta por isso optei por ir por Capela/Branzelo à ida, para marcar o ritmo e pela dificuldade que representa. Apesar de já a ter feito dezenas de vezes, esta é uma subida que nunca me aborrece porque tem o perfil ideal para começar uma volta. Hoje ataquei com especial vontade e cronometrei pela primeira vez. 31 minutos desde que entro na estrada principal que passa por Capela, vindo da Sobreira, até a risco que assinala uma antiga meta de ciclismo, lá em cima. A média foi a mais alta das últimas subidas e senti-me muito bem, o que só bem provar que a descansar também se evoluí. Isto deu-me a confiança que precisava para fazer o resto da volta a bom ritmo, para estar em casa até mais cedo do que o previsto, apesar do atraso na partida.
Pouco depois de entrar na N106 o susto do dia. Numa zona de recta ligeiramente a descer, estava a rolar a boa velocidade e a ser ultrapassado quando dou de caras com um verdadeiro campo minado na estrada. 5 ou 6m de buracos consecutivos mesmo na minha frente. Não me pude desviar porque ia certamente ser passado a ferro e por isso pendurei-me nos travões até ao último segundo, antes de os largar e entrar à velocidade que ia pelos buracos a dentro. Quando parei do outro lado, contava honestamente com um aro empenado ou um par de raios partidos dada a violência com que galguei o obstáculo. Felizmente não caí e mais surpreendentemente ainda, não ficaram mazelas nenhumas nas rodas. Estive uns minutos parado a inspeccionar cuidadosamente e, felizmente, tudo ficou em perfeitas condições do pneu aos raios, passando pelo aro. Depois de muitos quilómetros em estradas pouco recomendadas, mais uma prova de fogo superada por estas aparentemente frágeis rodas.
Refeito do susto atravessei para Castelo de Paiva. Aqui fugi ao que tinha planeado e aproveitei para ir confirmar o estado de um dos troços a ser utilizado no PIF*U, que se revelou em boas condições. Daqui apanhei mais um troço conhecido até Raiva. É um troço lindíssimo, que utiliza a antiga N222, que agora passa mais acima, numa daquelas variantes estúpidas. Por isso não há automóveis, nem aqui nem nos quilómetros seguintes. Aliás nos cerca de 25 quilómetros que me separavam de Nojões, haveria de me cruzar com apenas 8 automóveis o que prova o impressionante sossego destas estradas.
Deste troço temos uma vista privilegiada do rio, da N108 (agora R108) e da serra da Boneca, do outro lado do rio, que se apresentava ainda encoberta pela capa de nevoeiro que eu tinha cruzado uma hora antes.
Mais à frente, em Oliveira do Arda começa então o tal troço que desconhecia. À medida que me afastava do centro o asfalto envelhecia, ignorado à passagem dos anos. Teve apenas direito a uma pequena beneficiação no centro de Folgoso, para depois voltar ao esquecimento e à lenta erosão do esquecimento.
A meio do percurso tive forçosamente de parar. O que se oferecia à vista era simplesmente deslumbrante. Ali estava eu, a uma dúzia de quilómetros de Castelo de Paiva mas completamente isolado do mundo. O que via superava largamente as expectativas criadas quando desenhei o percurso, por aquela desconhecida linha branca no mapa.
O pavimento é medíocre (em sintonia com o que já conhecia do troço que liga à N224) embora se note um perfeccionismo que hoje em dia jamais seria possível. Em toda a sua extensão o asfalto era ladeado por um remate fantástico com uma fileira de paralelos, marca de um cuidado que existia na construção de estradas (mesmo as secundárias!) há 40 ou 50 anos e que hoje é substituído pela tradicional empreitada de grande escala sem qualquer outro interesse que não seja o económico. Dou muito valor a estes pormenores já que sou um apaixonado pela forma como se faziam as obras públicas há muitas décadas atrás e este era mais um exemplo de como as coisas eram bem feitas nessa altura.
Também por isso, sinceramente, nem dei conta dos buracos ou do alcatrão irregular. Estava radiante e absorvia com sofreguidão cada metro daquela estrada, como se fosse eu o primeiro ser humano, desde há muitos anos, a passar ali, qual oásis escondido no meio do deserto ou preciosidade perdida no tempo. É sempre complicado explicar por palavras o que se sente nestas alturas mas ali, como em muitos outros sítios, tive a confirmação de que é isto que é desta forma que quero continuar a pedalar, enquanto as pernas permitirem: isolar-me numa redoma muito pessoal e descobrir estes recantos absolutamente mágicos escondidos, mas à vista de todos, e que poucos se preocupam em cruzar. Era também este o ânimo que precisava para respirar fundo e colocar as ideias no lugar.
Aqueles 10 quilómetros pareceram-me 100, numa sensação de câmara lenta que é quase inexplicável.
E para isso muito contribuía a envolvente. Pouco depois de deixar Oliveira de Adra, mal a encosta fez uma curva e passei por Folgoso, entrei noutra dimensão. Esta é a última estrada do lado Oeste de Castelo de Paiva e só uma boa dezena de quilómetros mais para oeste é que existe outra estrada pavimentada. Assim, aparte das últimas casas de Oliveira de Adra, a vista só alcança monte e árvores. Nem um vestígio de civilização durante meia dúzia de quilómetros, além da própria estrada onde seguia e de uma torre fantasma do complexo mineiro do Pejão, que se estende pelo menos até aqui.
É impressionante este isolamento, tão perto da civilização. E é impressionante também a forma como poucas dezenas de resistentes ainda se agarram a estes pedaços de terra, em aldeias ou lugares espalhados pela serra.
A rotunda que entretanto alcanço já me é familiar. Restava agora a viagem quase sempre a descer até Santa Maria de Sardoura para apreciar mais um pouco das bonitas estradas de Castelo de Paiva, antes de cruzar novamente o rio, de volta a casa.
Para não repetir o percurso por Capela, optei por subir a N106 até Rans, tomando depois a direcção de Cete e de Parada de Todela para apanhar a N15 em Baltar, pouco antes da descida do Carreiro. Este é apenas um troço de ligação, sem grande história e por isso mantive um ritmo animado o que permitiu chegar a casa um pouco antes da hora prevista.
Fica por isso a memória de uma manhã de estrada excelente, com mais uns quilómetros desconhecidos adicionados ao currículo e à lista de pedacinhos de paraíso que volta e meia terei de re-visitar.
Dados finais:
117Km
24,7Km/h média
1670m acumulado
4h50m de viagem
Vou agora tentar voltar à regularidade nas saídas para começar também a época dos passeios grandes, agora que o tempo parece estar mais do lado do ciclista. Há aí muitos planos para cumprir e um objectivo muito grande a alcançar, mais para o final do ano.
Boas voltas, e lembrem-se... há sempre mais uma estrada deserta e fascinante para descobrir!