Carta Aberta
André Cardoso
E assim se acaba com a vida profissional de um atleta limpo, honesto, humilde, trabalhador, amigo do seu amigo. Um rapaz um homem sempre com um sorriso nos lábios, com a capacidade de motivar tudo e todos com a sua força contagiante.
15.11.18, foi decretada a decisão final do tribunal “independente” da UCI, 4 anos e todos os custos inerentes associados.
Mas voltemos ao grande início de toda esta história…
Nunca foi segredo que o meu maior sonho enquanto profissional era estar no Tour de France, essa oportunidade iria surgir em 2017, fruto de muito trabalho, dedicação e privações. A minha convocatória viria a ser confirmada nos dias após o Dauphine Libere.
Poucos dias antes do Tour já vivia esse sonho dentro de mim, estava numa felicidade imensa e dinheiro nenhum paga isso.
Dia 18 de Junho, fiz o que chamamos de descanso ativo, “treino ligeiro”, e almoço nos sogros onde permaneci até ao final do dia, já em casa os agentes de controlo anti-doping tocam na minha campainha, através do meu monitor eu consigo ver os mesmos, sei perfeitamente do que se trata. Como sempre, abri a porta de minha casa fora do meu horário e realizei o teste.
Dia 27 de Junho, recebo um email durante a minha sessão de massagem, a minha felicidade era tanta que após terminar ignorei por completo o meu telemóvel. Na viagem de regresso a casa “um dia antes da viagem para o Tour” recebo uma chamada da Suiça “advogado da UCI” fiquei em choque, perto de parar o meu carro em plena autoestrada, a minha esposa gravida e o meu filho mais velho seguiam comigo. Perguntei se era uma brincadeira, voltei a perguntar, disse que era impossível, impossível, o advogado voltou a insistir para ver o meu email e responder o mais rápido possível. Eu na minha inocência perguntei “mas de que substancia se trata, afinal?” a qual ele responde “EPO” claro, puro e duro. Fiquei sem palavras, apenas voltei a repetir que era impossível.
Nesta tarde começou o que terminou dia 15.11.18, uma luta desigual sem hipótese alguma de provar o que está à vista de todos.
Continuando…
Tentei ligar imediatamente às pessoas mais importantes da minha equipa e às pessoas mais importantes da minha vida. O stress era tanto que não conseguia encontrar os contatos de ninguém enquanto conduzia.
Já em casa, falei com quem tinha de falar em primeiro lugar, com isto e em menos de 1 Hora já a UCI tinha publicado o seu “Statement” nome desconhecido para mim até à data mas que nunca mais esquecerei.
Um grande ser humano, grande amigo com quem falei de forma imediata disse, “eu preciso da verdade, bem ou mal diz-me a verdade que eu estarei contigo para bem e para o mal.” Eu disse, “eu estou inocente, eu não tomei.” Após esse momento, ele tratou de tudo como se fosse para ele.
Um mês após…
Eu, o meu agente, e o meu especialista viajamos para a Suiça para a abertura da amostra B, data encontrada pela UCI.
Foram 3 dias que eu não desejo a ninguém, no final estávamos os três numa sala de reuniões do laboratório de Lausanne quando entra o especialista do laboratório que pela sua expressão só faltava dar pulos até conseguir voar, mostrou os gráficos ao meu especialista e disse, “como pode ver, a amostra B é positiva.” A nossa esperança de provar a minha inocência invadia aquela sala, invadia meu coração como se de uma morte se tratasse. O meu especialista questionou o porquê da linha estar mais para baixo do habitual, no qual o especialista do laboratório respondeu “isto é um teste para a confirmação de um positivo.” O meu especialista olhou para a cara dele e mais nada acrescentou. Pedimos para falar com a diretora do laboratório. Fizemos um último pedido, para nos deixar preparar o nosso comunicado, para não sermos apanhados de surpresa mais uma vez pela UCI.
Disse que enviaria toda a documentação para a UCI na manhã seguinte.
Entre conduzir e voar para o Porto “sozinho” foi a pior viagem da minha vida.
No dia seguinte, tudo preparado para colocar os nossos comunicados assim que UCI fizesse público. Nesse dia nada, no dia seguinte nada, e assim fui vivendo nesta vida durante um mês.
Um mês após o teste da amostra B recebi um email da UCI, fiquei incrédulo e num turbilhão de sentimentos, recebi todo o pacote da amostra B e, para que conste, a minha amostra B é negativa, sem substância. Contudo, é relatada pelos especialistas como inconclusiva, porque existe uma amostra A com substância. Segundo os especialistas de Lausanne e mais 4 laboratórios “existe a forte probabilidade da degradação da amostra B e, como tal, não podem declarar como um claro negativo, mas como um duvidoso/ inconclusivo”. As datas para a abertura da amostra B são agendadas pelo laboratório. E mais não preciso dizer.
Continuando…
No mundo do desporto, eu sempre pensei que, se a amostra B elimina a amostra A, o atleta teria de ser ilibado, mas no meu caso não foi bem assim. Eu deixei de ser acusado do artigo 2.1 e passei a ser acusado do artigo 2.2. Eu não tenho a substância no meu organismo, mas houve a tentativa ou uso da mesma. Enfim.
O meu sangue da mesma missão de controlo foi analisado e o resultado é negativo da presença de estimulantes de Eritropoietina, o meu passaporte biológico está limpo, nunca faltei um controlo anti-doping e sempre estive disponível fora do meu horário para passar um controlo anti-doping. Só existe uma amostra A com substância, não há adicional. Se eu realmente tivesse tomado a substância, teria de haver mais indicadores para provarem o mesmo, como o passaporte biológico, sangue da mesma missão.
Posto isto, se eu fosse um trapaceiro e pensasse como tal, se tivesse tomado EPO ia abrir a porta de minha casa fora do meu horário sabendo eu quem estava na minha porta?
Claro que não, eu nunca faltei um controlo. Além disso, posso dar duas faltas “justificando as mesmas posteriormente”. Primeiro, não levaria nenhuma falta porque não era o meu horário. Segundo, poderiam vir no dia seguinte “no meu horário” e eu não estaria. Aqui entrava a minha primeira infracção. Que fácil seria.
Como se de um jogo de computador se tratasse, eu ainda poderia usar outra vida.
E agora como defendia eu que não tinha usado EPO? Como justifico eu uma amostra A positiva?
Bonito…
Fizemos um pedido de levantamento de todas as urinas do meu passaporte para fazer um estudo, o não foi concedido pela UCI.
Eu não consigo provar com justificações científicas um erro do laboratório. Posso argumentar mil e uma coisas mas provas concretas eu não tenho, mas eles também não.
Eles têm uma forte probabilidade, comparável com uma forte probabilidade de contaminação (recentemente o laboratório de Barcelona perdeu a sua acreditação devido a uma contaminação).
E eu vou ser condenado 4 anos por uma forte probabilidade?!
Antes de se proceder o teste “SAR-PAGE” (teste que realizaram à minha urina) sofre um processo de imonopurificação, para a mesma é excretada todas as impurezas do organismo, e esta tem de se encontrar limpa sem carga molecular (eritropoietina sintética tem carga molecular o que a distingue da endógena). Neste processo a urina é dividida em alíquotas onde pode haver uma contaminação. A realização do teste A é feita com diversas amostras de diversas modalidades (isto também é importante de relevar), estes testes são caríssimos e desta forma os laboratórios evitam custos mais elevados. O teste B, esse quando solicitado pelo atleta, já é analisado isolado sem mais nenhuma urina a não ser do atleta em causa, com a presença do mesmo e de um especialista que o atleta tem direito a levar. Aí esta a grande diferença de uma A e uma B. A missão da urina é a mesma mas o procedimento não, o que faz toda a diferença. Estou a abordar este assunto técnico mas (não, não sou expert mas fui obrigado a adquirir isto tudo com tantas teses, sendo elas de especialistas ou legalmente) porque li muitos absurdos. Os testes de doping não são matemática, o teste que foi realizado à minha urina vale 80% os restantes 20% são os “olhos” do especialista que está a analisar a mesma. (especialistas estes que procuram doping, trabalham para isso). Até há poucos anos atrás os testes considerados atípicos, duvidosos nunca poderiam ser relatados como positivos. A eritropoietina é uma substancia que o nosso corpo precisa para sobreviver (cada vez mais os atletas fazem um trabalho em altitude ou hipoxia) esses treinos em altitude são realizados para trabalhar a sua eritropoietina endógena, tínhamos aqui assunto para imensas paginas e eu nada sei. Simplesmente volto a frisar “o doping não é 2+2=4”. Mas isto convém ficar entre as 4 paredes dos laboratórios e quando isto acontece é mais simples exterminar o atleta, o caminho mais fácil e sem consequências. E continuar com o cliché “acusaste, tomaste”. Até porque um falso-positivo tem graves consequências para o laboratório, a AMA pode tirar acreditação do mesmo. Estamos a falar do laboratório de Lausanne, um dos mais importantes e onde se efectuam os testes das grandes competições. É todo este conflito de interesses que eu ia derrubar?! Mas quem sou eu?! Ia eu desmistificar o doping?! São estas as minhas “teias” do doping.
Após este meu desabafo de revolta interior, de tremenda injustiça eminente resta-me dizer-vos que ainda tenho forças suficiente para tentar provar a minha inocência recorrendo para o TAS através do apoio “Legal Aid” tendo consciência que poderá ser só uma miragem. Com 16 meses de luta contra UCI não tenho mais condições para este recurso, só através de apoio jurídico.
The End…
Uma palavra de respeito e uma outra de conforto para todos aqueles que sempre acreditaram e acreditam em mim, bem como aqueles que nunca se esquecerão e falam orgulhosamente do ciclista que um dia fui. Mil desculpas aos que sofreram e ainda sofrem comigo esta grande injustiça desportiva. Muito obrigado do coração.
Não é um ADEUS é um ATÉ JÁ
André Cardoso