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Coimbra - Lisboa em 10horas

fuel100

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É quinta-feira, feriado, dia 23 de Junho. A família ruma a Lisboa para uns dias na praia e eu fico por Coimbra porque trabalho na sexta-feira. Não sei ainda se valerá a pena ir de comboio para Lisboa apenas no sábado e voltar logo no domingo.
É sexta- feira, 24 de Junho e acordo com uma ideia: E em vez do comboio, porquê não utilizar outro meio de transporte?
Então, se utilizo a bicicleta à semana como meio de transporte urbano, porque não hei-de utilizá-la em viagens de maior quilometragem?

A ideia vai-se estruturando cada vez mais consistente, descongela-se um itinerário já pensado anteriormente, organiza-se um roadbook retirado do Google Maps, constrói-se uma tabela de tempos de passagem, paragens e reabastecimento baseada numa média horária julgada necessária e possível. Depois de tudo ponderado e verificado que a travessia é exequível em tempo considerado razoável, faz-se os últimos preparativos.

Vai estar calor, é dos dias mais quentes do ano, que é um factor a ponderar e a ter em séria consideração.
De acordo com os dados recolhidos , irão ser cerca de 230km e 10h e tal em cima da Bianchi. É muito, talvez, mas tudo é relativo e quando a motivação é grande, os desafios tornam-se mais apelativos e irresistíveis.
Dadas as circunstancias e a decisão em cima da hora, vou sozinho, paciência, será a solo e em autonomia total. Adaptar-me-ei às circunstâncias da viagem e resolverei os problemas que poderão surgir.

O itinerário, já tinha sido pensado -evitar estradas muito movimentadas como a tradicional IC2.
Sei que há quem faça o trajecto pelo litoral, o que me obrigaria a um desvio de Condeixa/Soure/Louriçal até atingir a IC1 que corre a costa / Nazaré/Caldas/Óbidos etc. Não me motiva.
Escolho um itinerário que já conheço em parte e é utilizado pelos peregrinos que rumam a Fátima e que também coincide com o Caminho de Santiago.


Coimbra – Condeixa – Conímbriga – Rabaçal- Ansião e por ai abaixo rumo ao sul.
Não obstante não ser tão sedutora como a famosa Estrada nacional 2 que nos leva e mostra o Portugal Profundo e interior, esta, ou estas estradas irão certamente dar a descobrir algo de surpreendente e escondido. Não há nada como experimentar.


É sábado, acordo por volta das 4 da madrugada, já com tudo organizado, conta quilómetros no zero absoluto, GPS preparado para orientar-me na rota e registar dados, roadbook e timetable sobre a bolsazinha presa ao guiador e que me costuma acompanhar nos caminhos de Santiago.

A aventura inicia-se por volta das 4h.35m e é registada em foto ainda de noite. O termómetro marca 13 graus. Nada mau para um dia que pode chegar aos 40º.


De acordo com as previsões, o amanhecer será por volta das 6h 15m pelo que a fresca da noite, o silencio e a solidão, acompanhar-me-ão em simultâneo durante algum tempo apesar de que o raiar da aurora permitirá pedalar com alguma luz natural antes do sol aparecer.
Pedalo até ao Rio, atravesso a Ponte de Santa Clara e subo a antiga Estrada de Lisboa sem qualquer movimento, para além de alguns peregrinos madrugadores que por esta alturas metem-se ao caminho de Fátima. Cumprimento-os e desejo bom caminho (ou “camino” como fazemos sempre nos de Santiago em respeito por quem vai a pé).
A viagem prossegue sossegada mas rápida com um frontal a iluminar a estrada e uma luz vermelha à rectaguarda a avisar. Há que aproveitar a temperatura baixa das primeiras horas da manhã e atacar a zona mais difícil da travessia que são os primeiros 50km.
Estabelecem-se previamente cerca de 22Km/h para as primeiras 2h 30m, considerando as altimetrias do Sicó a transpor. O plano não é rigoroso, apenas uma orientação base para não ter surpresas.
Pouco depois de passar pelo Rabaçal, amanhece por fim.
Numa primeira paragem pontual, o momento é registado com as eólicas do Sicó como testemunhas longínquas. Aproveito e como qualquer coisa que tinha trazido, já que nada está aberto a esta hora.


Sinto-me bem, a média é superior em 1ou 2 Km/h relativamente ao programado e a partir de Ansião, ao quilómetro 50, as maiores dificuldades terminam e aproveito então, já aquecido pelo sol e pelo pedalar, para aumentar a velocidade de cruzeiro para 32/34 km/h, o que me permite antecipar-me ao timetable estabelecido.

Pedalar sozinho, tem destas coisas, podemos registar em fotos tudo o que nos rodeia, mas tirar um autoretrato razoável, é bem mais complicado. O sol nascente rasante e o ecrã de um muro branco, podem ser uma solução de recurso que regista a dinâmica da pedalada constante por essas estradas perdidas do centro de Portugal.



Quando chego a Freixianda, altura em que os caminhos de Fátima e de Santiago divergem, encontro algo que vale a pena referir – estou na denominada Estrada Real, não admira, é caminho de Santiago, que como se sabe, assenta muitas vezes em antigas estradas romanas e foi sucessivamente aproveitado como via de transporte terrestre até às reformas do sec XIX de Fontes Pereira de Melo.
As Estradas Reais seriam substituídas por Estradas Nacionais a partir da implantação da República


Mais adiante surge então um pequeno percalço. A velocidade era muita e em vez de virar à esquerda dirijo-me para Ourém. Ando 4Km até dar pelo erro, volto atrás e perco cerca de 15m.
A estrada certa dirige-se então a um dos pontos mais belos da travessia, a nascente do rio Nabão em pleno Sicó, numa zona chamada de Aldroal. Um local natural requalificado e equipado com algum apoio para quem pretende descansar um pouco antes da íngreme subida da serra.




Depois de uma breve paragem a desfrutar a nascente, dou uma curva à direita e inicio então aquilo que é uma rampa a mais de 15%, qual Alp’Huez.




Transposta esta dificuldade inicia-se a descida que levará até Tomar cuja aproximação se faz com o Convento de Cristo no horizonte.
Já não passava por Tomar, faz mais de 20 anos, fica fora das rotas normais norte - sul.


Detenho-me por isso e porque estou muito adiantado relativamente ao estabelecido, para umas fotos no parque do Nabão que continua belo com uma fotogenia de postal como sempre.





Começa a ser hora de parar para um primeiro reabastecimento mais prolongado, mas continuo em direcção ao Entroncamento (que passo ao lado numa terra chamada Atalaia) e dirijo-me à Golegã, pelos campos do Ribatejo.
Paro finalmente na aldeia mais portuguesa do Ribatejo, assim denominada à entrada - Azinhaga do Ribatejo, onde numa típica tasca reabasteço-me com uma bela sandes de pão caseiro e queijo de azeite da região.


Uma fachada revestida chama-me a atenção e faz juz à denominação da aldeia.


Retemperado, prossigo viagem, agora a grande velocidade pelos campos do Ribatejo e chego rapidamente a Santarém, onde entro através de uma localidade ribeirinha denominada Ribeira. A subida à cidade faz-se por aqui, e rapidamente saio dela dirigindo-me agora para a última fase da viagem, sempre com andamentos na ordem dos 30/35Km/h aproveitando o pouco vento, o bom piso da estrada (Nº3) e o facto de dominar a planura.
Já na Nº10 parei em Vila Franca para comer um cachorro e prosseguir viagem sem história até Sacavém, onde através da antiga ponte sobre o Rio Trancão (continua belo e limpo como sempre), cheguei a Lisboa.


e depois ao Parque das Nações por volta das 14h 56m, 10h e 20m após a partida de Coimbra, 225Km depois.




O termómetro marcava 43 graus em Sacavém e uns meros 39,50º à beira Tejo, registado para a posteridade.


A viagem não terminaria aqui, já que depois de uma bela cerveja e mais umas quase 2 dezenas de quilómetros (como Lisboa é grande, chiça), cheguei à estação marítima de Belém onde pouco depois apanhei um cacilheiro em direcção à Trafaria.


Impressões da travessia:
Melhor da travessia : ter viajado de noite e assistido ao nascer do sol no Sicó.
A serra do Aldroal e a nascente do Nabão.
Pior: A travessia por Lisboa até Belém em que tive um pequeno percalço com o transito (nabice a minha) que podia ter acabado mal).
O famigerado calor: Pois, apesar do alerta amarelo e das temperaturas muito altas, o vento provocado pela velocidade atenuou imenso o efeito do calor, não dei pelos 43graus em movimento.Parado, já escaldava.
O creme protector colocado às 10 da manhã e depois já em Vila Nova da Rainha, anulou qualquer hipótese de massacre da pele, não tendo ficado com mais bronze do que já tinha antes.
Por estranho que pareça, acabei os quase 250Km muito fresco e com a sensação de que poderia prosseguir a um ritmo constante até ao Algarve. Isto leva a pensar em voos mais altos como por exemplo uma travessia (esta com companhia, forçosamente) Porto – Lisboa, ou Coimbra - Santiago de Compostela.

A bicicleta :
A Bianchi, dúvidas houvessem, é de facto uma bicicleta muito confortável com uma geometria equilibrada. É responsável em parte pela frescura física e do esqueleto com que cheguei ao destino.
Foi um verdadeiro teste à bike em grandes quilometragens.


Dados da travessia :
Partida Coimbra : 04h 35m
Ghegada Parque das Nações : 14h 56m
Duração total até ao Parque das Nações : 223Km / 10h 21m 30 s.
Prolongamento até Belém : 19Km
Total : 242Km.
Velocidade máxima : 59.43K/h
Tempo a andar : 8h41m
Tempo parado : 1h 40m
Velocidade media : 26,50Km/h (Parque das Nações).
Temperatura mínima : 13º (5h)
Temperatura máxima : 43,5º (14.30h
Altimetria máxima : 289m
Altimetria mínima : 2m
Altimetria acumulada : 1818m



 

fogueteiro

Active Member
Só tenho uma palavra EXCELENTE!!!

A reportagem forográfica está magnífica. Parabéns.

Parabéns igualmente pela boa escolha de atravessares o Sicó. Gosto mesmo muito desse bocadinho, e então de bicilceta deve ser um prazer.
 

duchene

Well-Known Member
Obrigado pelo inspirador relato e pelo espírito que dele transborda. E a profusa ilustração só o valoriza ainda mais!

Esta é também uma prova de que as melhores aventuras podem ser moldadas pela positivamente perigosa combinação da vontade com a oportunidade!

Espero de futuro poder ler mais da tua agradável prosa por estes lados...
 

tranquilo

Active Member
Que grande volta e excelentes fotografias! E com esse calor no Ribatejo até deve ter doído!
Por favor mete o track gpx num link (ou pelo menos a ligação entre Coimbra e Tomar) para o pessoal tirar ideias!

Abraço

PS:
Eras tu por quem eu passei ontem perto das 20:00 na estrada de Penacova?
 

SLM

New Member
Muito bom texto e grande aventura.
O corpo humano é de facto incrível.
No ritmo certo e com alimentação adequada dura e dura...
Já agora, essas fitas...:p
 

DELTA

New Member
Que grande tirada! Excelentes fotografias!

O nome correcto não é Aldroal mas sim AGROAL e o rio Nabão não nasce lá. Já vem de trás, mas é de facto a nascente do Agroal que muito contribui para dar vida ao rio.
A serra não é sicó. Sicó fica mais para os lados de Pombal.
Peço desculpa da correcção, mas o seu a seu dono.

As águas da nascente são boas para problemas de pele. No verão está quase sempre repleto de emigrantes.
santarem_agroal.png


A rampa é uma autêntica parede e não é para qualquer um!
 

fuel100

New Member
Agradeço a correcção.
De facto estava em erro, porque tinha saído das imediações do Sicó, perto de Almoster e pensei que ainda lá estivesse.
Pareceu-me ver uma alusão ao Nabão, daí ter também feito confusão.
Mais uma vez, peço desculpa pelos lapsos geográficos e agradeço as correcções.
 
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