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[Arquivo] La vélo Duchene: As crónicas de André Carvalho

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angel@

Member
Céus! Fiquei quase sem palavras! Chegar ao topo e contemplar este cenário é o prémio justo para o sofredor.
Parece um mundo à parte. Parabéns pela conquista.
 

Paulo V.

New Member
Não páras de nos conseguir surpreender :D
Como já disseram aqui, se o Montemuro é teu, eu espero que quando for fazer os meus reconhecimentos e aventuras para lá, não tenha de pagar portagem!!!
Também te gabo a coragem de meteres a tua bike naquela estrada... e chamar estrada aquilo é ser simpatico.
 

duchene

Well-Known Member
De um modo abrangente, obrigado a todos pelas palavras de incentivo. Irei recompensa-las já de seguida.

Entretanto, e respondendo particularmente a cada um:

Bruso,
De facto enfrentei 5 interessantes quilómetros de sterrato...

Daniel,
Não diria que é meu. Só o pedi emprestado por algumas horas!

Ângela,
Como bem sabes, a recompensa maior de qualquer aventura são estes pequenos privilégios com que somos presenteados no meio do nada.

Filipe,
Vou tomar isso como um elogio! ;)
De facto a paisagem no cume é única e faz esquecer qualquer adversidade passada para lá chegar!

Ricardo,
Já há alguns anos que o meu lema é "há sempre mais uma estrada deserta e fascinante para descobrir". Pois aqui estava mais uma!

Pratoni
Não sou esquisito. Desde que a via vá ter a sítios bonitos e seja ciclável (ainda que no limite, como no caso) lá estarei eu e a Lynskey para a explorar!

Paulo,
Como também já disse, só o tomei de empréstimo. Está lá para quem o quiser conquistar!
Quanto à Lynskey, foi pensada para ser uma bicicleta de aventura, dentro do que uma bicicleta pura de estrada o pode ser. Portanto tem de estar sempre pronta a enfrentar o inesperado!
 

duchene

Well-Known Member
[Nota prévia]
Como tenho andado a falhar muitas promessas ultimamente, e à boleia de uma das conquistas mais saborosas deste ano, achei por bem não procrastinar mais e regressar às minhas crónicas, deixando-vos com o relato ilustrado da minha recente ascensão até ao Vértice Geodésico da Serra de Montemuro, em bicicleta de estrada. Esta crónica ultrapassa um par de outras que deveriam já estar concluídas, mas acredito que esta possa ser também uma forma de as desbloquear em termos de escrita.

A ferrugem na prosa é mais do que muita! O que antes escrevia em 3 ou 4 horas, demora agora um pouco mais a ser digitado e mesmo a fluidez do relato carece de melhoria. Poderá também existir alguma pobreza de linguagem, aliada a eventual incoerência temporal/verbal ou de construção frásica, pontuada aqui e ali com um evidente excesso de vírgulas. Por tal peço, desde já, as minhas desculpas aos incautos leitores que se aventurarem ao longo dos quase 42.600 caracteres e 100 parágrafos que se seguem.

A escrita, tal como a arte de rodar os pedais, só melhora com a prática!

Dito isto, dois anos e meio depois, aqui fica o meu regresso às crónicas de aventuras por estradas desertas e fascinantes!

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(E : Solo) Montemuro: onde a estrada acaba e uma ideia fixa começa... (Parte I)

Este era um objectivo em que já matutava há um par de anos. Recuando rapidamente até ao início da história, a minha relação com o Montemuro não começou da melhor forma. No início de 2011, no dia previsto para o primeiro ataque ao alto (diga-se, às Portas de Montemuro) um engano no mapa atirou-me para fora da subida prevista, pela vertente da Faifa. Desde esse dia, tal subida tem sido o meu unicórnio no Montemuro. Nunca mais a tentei desde aí, por razões que a própria razão desconhece.

Na visita seguinte ao maciço, as contas foram ajustadas em grande: subi-o logo por 3 vertentes diferentes e, desde então, voltei lá mais doze vezes, sempre a descobrir novos troços em cada uma dessas incursões, naquele que é o meu maciço montanhoso de eleição, de entre as dezenas que já tive o privilégio de escalar.

Aparte do projecto pessoal de subir todas as vertentes possíveis da Serra (desta e de mais algumas outras!) — demanda que estará agora cumprida a sensivelmente dois terços no caso concreto do Montemuro — existia ainda o objectivo maior que era o de levar uma bicicleta de estrada até à base do penedo granítico onde está implantado o vértice geodésico, a 1382m. Que é como quem diz, 200m acima da vulgar passagem no topo, pelas Portas de Montemuro e respectiva capela.

Tinha igualmente a convicção que, ao fazê-lo, tal conquista teria de ser o corolário de uma ascensão digna de registo, nomeadamente que estabelecesse a bitola de ser a maior a ascensão vertical (num só bloco) que já tivesse realizado no Montemuro. Este objectivo de atacar o cume foi sendo adiado ao longo do tempo mas, finalmente, por estes dias decidi que teria de o riscar definitivamente da coluna das "aventuras a fazer".

Assim sendo, e com estas premissas de grandeza em mente, debrucei-me sobre um mapa em branco e comecei a desenhar...

Desde logo uma alteração de fundo na minha forma de planear as rotas. Fiel companheiro de milhares de quilómetros, desenhados pelas estradas mais improváveis deste Norte português, o BikeRouteToaster (BRT) aparentemente entrou em negação com mais uma alteração da API do Google Maps. Já o mesmo tinha acontecido com a alteração para a API 2 mas em poucas semanas o problema tinha ficado resolvido. Desta feita, a prolongada ausência bem como a inexistência de resposta aos meus emails fizeram antever o pior...

Para mim o BRT era "a" forma de planear. Simples, prático, directo e extremamente preciso no cálculo dos acumulados de subida, característica que valorizo de sobremaneira quer para a definição do grau de exigência das voltas quer para a gestão anímica ao longo das mesmas.

Desta vez, e numa perspectiva de substituição temporária, estava entregue às mãos do RideWithGps e do seu algoritmo de altimetria absolutamente fantasioso. Da mão cheia de alternativas que experimentei nas últimas semanas, nenhuma foi capaz de igualar a precisão do BRT, realidade que aliás já estava à espera, pelas experiências que tenho feito ao longo dos tempos e que nunca me tinham convencido a mudar de mapeador de rotas. Aliás, nem igualar nem sequer ficar consistentemente perto, para que seja possível fazer um desconto fixo e chegar a valores plausíveis. Quedei-me, por isso, por aquele onde era mais agradável rabiscar, certo de que teria de calcular grosseiramente a altimetria à mão ou então andar a exportar e importar ficheiros...

Com o mapa em branco, decidi desde logo que ia mudar a "base logística" que habitualmente instalo em Cinfães, transferindo-a para as margens do Douro, em Pala. Isto permitiria-me ganhar logo à partida cerca de 350m de ascensão sem desperdiçar quilómetros a descer até ao nível do rio. Por outro lado, ficaria mais perto das encostas viradas a Resende, objecto de interesse adicional para esta aventura. Além do mais, nunca é de enjeitar a magnífica paisagem que nos é apresentada a partir da marginal do Rio Douro e que seria, certamente, um excelente tónico para um dia bem passado.

Definido o ponto de partida, seguia-se a tarefa de delinear a espinha dorsal desta aventura, ou seja, a subida principal do dia. Uma das rotas longas ao topo que ainda me faltava conhecer - e candidata agora a ser incluída na tal grande ascensão - era, curiosamente, a mais conhecida via de acesso às Portas de Montemuro. A R321 é, normalmente, a rota de eleição para todos os que querem tentar uma primeira subida até ao alto. Mas, se bem me conhecem, não raras vezes a rota "normal" é quase sempre a última que descubro, depois de vasculhar as encostas das montanhas em busca de alternativas menos conhecidas. O Montemuro não é excepção e, portanto, nunca o subi pela vertente Norte, utilizando a referida R231. E também não seria desta vez que o faria. A totalidade da "via larga" teria de ficar para uma incursão futura, esgotadas que estiverem outras hipóteses mais interessantes... o que poderá demorar algum tempo!

Há uns meses, ao vasculhar o mapa, descobri um par de troços que configuravam uma ascensão que ainda não tinha explorado, pelo vale Norte do Montemuro, na encosta Oeste, vertente que aliás já tinha escalado, mas apenas ao de leve, de Cinfães para Ervilhais. Conhecia bem era a sua irmã do lado Este, que subi várias vezes por Pelisqueira e Ferreiros de Tendais. Mas, do que já tinha visto, pareceu-me que esta opção nova seria uma aposta interessante.

Rabisquei então uma volta contida, a rondar os 100km, centrada nesta ascensão principal até ao cume do Montemuro mas sem deixar de explorar mais uns recantos que ainda me faltavam visitar. Aliás o aquecimento seria desde logo interessante, com bastante subida logo nos primeiros vinte quilómetros. Sem facilitar, como é apanágio das minhas aventuras...

Comparadas as opções de pormenor e feitos os respectivos ajustes, de entre o manancial de possibilidades que o Montemuro oferece, cheguei a uma versão final do rabisco no mapa. Escusado será dizer que seriam umas duas da manhã de sexta-feira. O que daria apenas para o habitual sono reduzido pré-aventura. Há mesmo coisas que nunca mudam...

O dia de pedaladas começou cedo e, como esperado, bastante frio. Fui fazendo a rotina matinal sem grande pressa, certo de que seria mais inteligente deixar avançar um pouco a manhã, para evitar submeter as articulações a temperaturas perigosamente baixas. Assim, foi com toda a calma que arranquei para Pala, via Marco de Canaveses. Aproveitei para revisitar, embora de carro e apenas parcialmente, aquele que chegou a ser o meu percurso mais longo nos primeiros meses de 2010, quando fazia a volta de Valongo a Valongo, passando por Entre-os-Rios, Pala, Marco de Canaveses e Sobretâmega. 150Km pejados de civilização mas relativamente interessantes. O miolo de curvas e contra curvas entre Pala e o Marco é das zonas mais bonitas do percurso, serpenteando pelos recantos da serra. E depois de muito desfiar este novelo curvilíneo, já perto do destino sou brindado com a primeira vista panorâmica do impressionante maciço de Montemuro, visão que impõe desde logo respeito...

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Cá em cima estava sensivelmente a mesma temperatura fresca do que em Valongo, mas nem por sombras imaginava o que me esperava à beira rio... Estacionei na marginal, junto à capela de Pala e, quando abri a porta para me espreguiçar na bonita margem do Douro, tive um encontro imediato com a incrível ventania que fustigava a bacia de Pala e Porto Antigo! Um vento gelado que me fez pensar uns bons minutos na combinação de roupa técnica que iria levar comigo. Por norma sou calorento e evito levar muita roupa para não ficar desconfortável a meio do dia, nas horas em que o sol se faz sentir com mais intensidade. Mas o vendaval fez-me pensar duas vezes nessa regra. Ainda assim, no final acabei por decidir levar só uma camisola interior cabeada para proteger o tronco, juntamente com um casaco pouco térmico e o colete corta-vento por cima. Buff, luvas, calção, pernitos, meias de lã e meias corta-vento completaram o fardamento. E bem que iria agradecer esta ponderada decisão ao longo do dia...

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Com tudo isto, o arranque acabou por ser naturalmente tardio. O relógio marcava exactamente 10 da manhã e o termómetro uma temperatura ainda bastante baixa. O vento frio fustigava-me com vontade e, depois de mais uma paragem de 15 dias sem pedalar, além de estar concentrado em retomar a naturalidade dos movimentos tentava, sobretudo, aquecer...

O traço gizado no mapa leva-me desde logo para Oeste. Primeiro ao longo da margem Norte do rio e, logo depois da travessia para Porto Antigo, pela N222 em direcção a Resende. Primeiros quilómetros ainda com a companhia do Douro, que se distanciava rapidamente à medida que a estrada sobe. Aos 6Km já estou 200m acima do espelho de água, apesar de ter arrancado com ele a meus pés.

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O percurso que desenhei não atacava directamente o cume. Não costumo balancear as voltas assim porque gosto de fazer um certo crescendo, até ao momento alto (literalmente!) do dia. Mas isso não significaria moleza. Antes de mais havia que fazer um pequeno aquecimento pelo vale do rio Cabrum, subindo até perto dos 800m, antes de voltar a descer para os 60m do Rio Bestança. E aí sim, começaria a grande subida do dia.

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Como tal, e apesar de apanhar uma pequena descida, numa altura em que a estrada contorna uma reentrância da montanha, a predominância é e será claramente de subida, embora suave, por força de estar a pedalar numa Estrada Nacional. Este contorno à serra permite também o primeiro descanso do vento que se fazia sentir no canal do rio, autêntico túnel que concentra toda a força da buzaranha. E sem o vento a arrefecer, rapidamente a temperatura corporal sobe, o que imprime logo outro ânimo às pedaladas.

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Em Finzes despeço-me do Douro por umas horas: só o voltarei a ver no final do dia, já de regresso à base. Viro para o interior e desde logo sou recebido pela alteração do caderno de encargos da obra: os limites de inclinação do pavimento nas estradas municipais são mais folgados e, por isso, a estrada inclina rapidamente em direcção a Pinheiro. Há que poupar em terraplanagens e movimentação de inertes!

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Este bloco inicial é uma espécie de continuidade da marginal e da N222 em termos de implantação demográfica. Nem muito concentrada, nem muito dispersa... Não atravesso nenhuma localidade memorável mas a estrada é de boa qualidade, fazendo-me lembrar a subida ao S. Cristovão em Resende: bom piso, inclinação séria, envolvente agradável e, sobretudo, muito sossego automóvel. Aliás, agora que fiz a totalidade do percurso, posso afiançar que foi das voltas em que me cruzei com menos veículos e este troço inicial não foi excepção.

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Pequena paragem num primeiro topo, para tirar o buff e as luvas. As subidas tinham-se encarregue de aquecer os ânimos e o sol estava suficientemente quente para dispensar agora estes extras. Se o buff ficaria guardado até à descida final, as luvas foram sendo utilizadas intermitentemente ao longo de todo caminho, já que nas descidas com passagens mais abrigadas, a temperatura descia rapidamente para níveis bastante desagradáveis para as mãos.

Gosto bastante destas estradas que contornam por completo os vales recuados da montanha e em que, estando a circular numa das encostas, conseguimos ver do outro lado do vale a estrada que nos espera uns quilómetros mais à frente. Aqui, nos arredores de Lagariça, acontece precisamente isso. Distraio-me, por isso, durante alguns segundos a mirar a estrada que entretanto circunda o vale e surge mais acima, lá do outro lado.

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Entre Covelinhas e Ovadas atravesso, novamente, o rio Cabrum. Além da travessia moderna, vislumbra-se a jusante ponte centenária que antes servia de ligação entre as duas margens. Agora dedica-se exclusivamente às travessias pedonais e portanto não me consigo servir dela. Por aqui, a frescura das águas do rio traz consigo as primeiras manchas de gelo nas orlas da estrada, fenómeno que aconselha prudência.

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Esta continuidade pós travessia é infinitamente mais macia que uma outra que existe uma escassa centena de metros acima, na barragem de Mariares. Essa implica que, num dos sentidos, seja necessário ultrapassar a absurda rampa de acesso à aldeia de Mariares. Neste belíssimo exemplar de colocação artística de tapete betuminoso as inclinações mantêm-se firmes nos 22% durante uma interminável centena e meia de metros, para alegria de quem tem a brilhante ideia de lá passar. E não me perguntem como é que sei isto...

Continuando, em Ovadas, logo ali à distância de uma pequena subida, consegue-se ter uma interessante perspectiva do minifúndio utilizado nesta região, cuidadosamente encaixado em socalcos que amenizam as vincadas encostas.

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A estrada continua a subir, de forma nem sempre suave, em direcção à passagem pelos 750 metros. Mais algumas manchas de gelo adornam as bermas, confirmando que a temperatura continua bastante baixa nas zonas abrigadas, apesar de o sol já obrigar a desapertar um pouco os fechos do colete e do casaco, sobretudo nas secções mais inclinadas da subida.

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Aqui, e depois de já me ter cruzado com um par de rebanhos de ovelhas e respectivos pastores ao longo destes quilómetros iniciais, esperava-me um novo encontro com a fauna local... Várias toneladas de carne seguiam em parelha, estrada fora, pouco depois da aldeia. À minha passagem reparo em alguns olhares de soslaio, umas experiências em trote de fuga e algum estudo mútuo, não vá algum dos animais assustar-se perigosamente ou eu entrar na zona de (des)conforto de um deles. O pastor, entretido ao telemóvel, afiança que elas não fazem mal. Eu, como é óbvio e face à disparidade de massa corporal entre mim e as quadrúpedes, ponho sempre as minhas dúvidas: é que dias maus todos nós temos! Mas as simpáticas bovinas acabam eventualmente por encostar na berma e eu sigo a minha viagem.

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Com apenas 22Km percorridos, conto já com 900m de desnível positivo coleccionado. A subida (e relembro que esta é apenas uma "subidita" secundária no Montemuro) tem uns respeitáveis 13Km a 5% com a primeira parte a ser uma espécie de Assunção comprida, contabilizando logo 8km a 6.6%. Embora longe da frescura física de outros tempos, estou mesmo onde me sinto bem: a subir! Não poderia ter desejado, por isso, melhor aquecimento para o resto do dia.

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Mais do que os números, esta subida serviu para conquistar a primeira grande panorâmica do dia, já nos arredores de Ramirez. Daqui avista-se todo o enorme vale do rio Cabrum e os dois principais maciços a Norte, o Marão e a Aboboreira. O vale é surpreendentemente largo e alguns quilómetros separam as duas cumeeiras.

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O Montemuro tem esta característica interessante de conter verdadeiras montanhas, dentro da montanha. São exemplos disso os vales de Paus, Cárquere, Sobradinho, Pereira, Faifa e outros, que configuram só por si interessantes vertentes individuais. Este vale do rio Cabrum, em particular, será um dos três mais longos, a par com o vale principal de Alhões e o de Paus, já com a Serra das Meadas como companhia.

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Daqui consegue-se perceber a forma dispersa como estão implantadas as pequenas povoações ao longo da serra, embora seja uma dispersão que gravita ao longo de um fio condutor, que no caso é a estrada que tenho vindo a percorrer.

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O perfil é agora predominantemente descendente, seguindo o recorte da montanha. Curvas e contracurvas, salpicadas aqui e ali com manchas geladas, que assim ficaram por estarem resguardadas da luz solar grande parte do dia. Nota-se aliás, uma imediata flutuação térmica à passagem por esses recantos mais gelados. Tento ter a cautela devida, para não ser apanhado desprevenido a alta velocidade em cima de uma destas armadilhas brancas. A solo e em autonomia, todo o cuidado é pouco...

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Ramirez, Paço e Verduzelo seguem-se com a rapidez que a estrada gelada permite, embora as elevadas inclinações convidem a outras velocidades. Aliás, um pouco antes de Verduzelo apanho novamente uma generosa camada branca a revestir a negrura do asfalto e que, mais uma vez, demanda máxima atenção e prudência no seu atravessamento.

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Mais uma pequena subida, coroada por nova panorâmica do vale, desembocando a uns aparentemente modestos 450m, mas onde se desenrola mais uma maravilhosa passadeira asfáltica. Não necessariamente pelo aveludado do tacto mas mais pela rectidão ondulada que a caracteriza.

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A estrada está-se a revelar um pequeno tesouro e, aqui e ali é salpicada com verdadeiras jóias paisagísticas que fazem esquecer, com facilidade quer o frio quer a relativa dificuldade do percurso.
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Regressa a descida, desta feita até aos arredores de Oliveira do Douro. A concentração civilizacional aumenta também, embora seja uma zona sem particulares atractivos. Ultrapasso, por isso, com rapidez estes quilómetros. Excepção feita talvez a uma pequena janela que permite mirar o Douro em mais uma agradável panorâmica.

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Os derradeiros dois quilómetros de subida a 7% até Desamparados, selam este primeiro núcleo da minha volta. A aposta em descobrir este vale provou, mais uma vez, que ainda não perdi o jeito para mapear e encontrar estradas desertas e fascinantes. Se a primeira parte do percurso é mais mundana, de Lagariça em diante a variedade de paisagens é extraordinária e não fica nada a dever a qualquer uma das outras encostas do Montemuro. O perfil comparativamente suave faz da subida uma excelente aposta para uma primeira incursão à serra, uma espécie de apalpar de pulso ao manancial de propostas que por aqui se podem encontrar. Aliás, em Ramirez há até a hipótese de cortar para Vale de Papas, ligando de seguida à aldeia da Gralheira, já a 1100m de altitude.

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Voltando ao percurso, a partir daqui é sempre a descer até ao sopé, já dentro do vale principal da serra. A descida é sinuosa mas entusiasmante. O frio, esse faz-se sentir e em Fundoais tenho mesmo de parar para calçar as luvas.

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Aproveito para captar mais uma panorâmica do vale, com o Montemuro sempre a dominar a paisagem. A neblina que acompanha o frio ajuda sempre a criar um ambiente ainda mais fantástico. Segue-se-lhe mais uma tirada de descida que me faz perder rapidamente altitude. Em 2 quilómetros baixo mais 250m, muito graças à generosa inclinação da descida e de um par de cotovelos na estrada, que ajudam a perder metros mais rapidamente.

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Reconheço agora esta estrada de outras aventuras. Circulo no troço inicial da subida por Ferreiros de Tendais, e a perspectiva inversa que agora tenho das rampas iniciais confirma que, para quem sobe, aquela parte é de facto um cartão de visita bem inclinado desta vertente do Montemuro. Mas hoje não era por aqui que escalaria o gigante e, por isso, continuo a favor da gravidade, em direcção ao rio.
 

duchene

Well-Known Member
(E : Solo) Montemuro: onde a estrada acaba e uma ideia fixa começa... (Parte II)

Já há um par de anos que não cruzava o rio Bestança — um dos menos poluídos da Europa, antes que me esqueça de referir — em direcção a Oeste. Hoje iria fazê-lo, e não só nessa direcção. Mais tarde, no regresso a Pala passaria novamente por lá, em sentido inverso. Nas últimas incursões por estas bandas sempre fiz o atravessamento em direcção a Porto Antigo, para subir o Montemuro por Ferreiros de Tendais, logo ali à direita. Desta vez voltava então a passar por cima das águas límpidas para tomar a subida de Cidadelhe em direcção a Cinfães, embora apenas me fosse servir dela por menos de 1km. Isto porque, num ápice, já fazia a viragem a viragem à esquerda que me colocaria na tal estrada alternativa à R321, rumo ao cume.

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Ainda mal começara a subida e já pisco o olho a uma bonita casa de época, em tons de lavanda e amarelo, que estava com ar de quem mirava o vale há já uns bons 100 anos. Penso para mim que daria um bom retiro de velhice, caso a estrutura aguente até lá, ou pelo menos até eu capitalizar num qualquer jogo de sorte com cruzinhas...

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Não sentia, para já, ainda uma tendência muito clara de subida. A estrada segue o contorno da serra, a meia encosta, sem grande pressa de ganhar verticalidade. Já sei que isto são más notícias, desde logo porque a estrada regional corre já uns bons metros acima e, portanto, esta aparente acalmia vai-se certamente pagar caro mais à frente, quando for necessário recuperar os metros de atraso rume ao cume...

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A via asfaltada é estreita e muito agradável de percorrer, com uma vista privilegiada ao sobre o vale do Bestança. Infelizmente é ladeada com esporádicos salpicos de desinteressantes exemplos arquitectónicos aleatórios. Ora temos pequenas casas de pedra, ora temos vivendas desproporcionadas dos anos 80, ora temos... uma coisa com quatro paredes e um telhado. Infelizmente isto é um problema transversal a muitas outras zonas em que já pedalei: não se conseguiu, ao longo dos anos, manter uma certa arquitectura regional que antes existia e agora esta aparente salutar variedade que existe é, na verdade um bilhete postal muito pouco interessante.

Nos arredores de Enxidro, a primeira grande recompensa pela escolha da subida. Um bonito recanto proporcionado pelo atravessamento de um riacho, com direito a queda de água e tudo. Uma pequena nota aqui, sobre as cores outonais nesta volta.

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O Montemuro é um pouco mais tímido do que outras paragens no que às paletas de Outono diz respeito. Ainda assim, há uma certa homogeneidade de castanhos e laranjas, bastante bonitos e que dão uma textura muito agradável aos vales. Os recantos são altamente arborizados e mesmo tratando-se maioritariamente de árvores de folha caduca, o efeito visual é espectacular. O cenário muda um pouco junto ao cume e em algumas vertentes Oeste onde predomina a vegetação rasteira, que mantêm uma homogeneidade verde ao longo do ano.

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A estrada mostra agora uma tendência mais ascendente, o que permite ir coleccionando metros de ascensão. Já estou perfeitamente vacinado no que concerne à agressividade sempre associada às subidas por estradas secundárias. Mas aqui e ali, ainda me surpreende a poupança que foi feita em trabalhos de terraplanagem. Em Valverde apanhei uma dessas surpresas. A estrada leva um golpe de rins tal que durante umas boas centenas de metros a inclinação não baixa dos 17%. E começa logo bem, com 50 metros em pavé molhado por entre o casario, recheado de escorregadias folhas mortas. Não há desmultiplicação que permita pedalar em cadência! Resta a força para me impelir por ali acima. Aplico tanta sensibilidade na pedalada quando possível, na certeza que um pneu a resvalar no sítio errado garantia um desagradável contacto corporal com o paralelo. Vencer o pavé não traz, contudo, melhorias na inclinação. Ao contrário, junta-se um novo extra à equação: pedalo agora a olhar para o topo desta rampa, completamente encandeado pelo sol já virado a Oeste ao mesmo tempo que tento manobrar entre ramos, pessoas e alfaias, seguindo o estreito corredor deixado livre no meio da estrada por uma família de agricultores que fazia nessa altura a poda às videiras de um terreno sobranceiro. Uma verdadeira gincana inclinada!

Depois de um gancho à esquerda e mais uns metros de inclinação pouco recomendável, o perfil estabiliza, permitindo libertar alguma tensão e proporcionando a melhor vista panorâmica do dia, até então. O vale que se estende à minha frente é lindíssimo e é a desculpa perfeita para mais uma fotografia, em simultâneo com a recuperação de algum fôlego.

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O descanso é efémero, uma vez que a acalmia na pendente é parcial. Tal como antes deste rebuçado, a estrada continua a subir a bom ritmo depois. Os recentes acontecimentos inclinados configuram a tal recuperação súbita de elevação que preconizei ao longo do primeiro terço da subida e que a acalmia dos primeiros quilómetros já fazia prever: 3 quilómetros, 300 metros de desnível positivo vencido. A matemática no Montemuro é sempre divertida!

Regresso momentaneamente à R321. Por contraste imediato, a estrada é virtualmente plana (são os tais falsos planos a 6%), embora continue a subir a ritmo certo. Estou neste momento, sensivelmente a meio caminho entre o Rio Douro e o cume do Montemuro. Como tinha referido antes, esta via por Açoreira não tem ligação directa ao topo, sendo necessário utilizar dois breves troços da estrada nacional: este e um outro já no final, nas Portas de Montemuro. Desta feita são apenas dois quilómetros e meio, até regressar às estradas secundárias, em Tendais.

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Tal como na subida ao Alto de Espinho no Marão, a subida às Portas de Montemuro desenvolve-se em duas grandes zonas, com um bloco inicial mais habitado e menos interessante que se desenvolve e nos entrega depois a uma paisagem mais limpa e agradável à medida que a altitude aumenta. Este segmento que agora faço, pertence já claramente à zona menos habitada e mais interessante da subida pela R231. Acaba portanto por ser um troço agradável, em consonância com o que tinha vindo a encontrar até então.

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Mas dura pouco, como disse, este pisar de estrada principal. Em menos de nada estou a fazer a viragem para Tendais. O vilarejo não é muito interessante à vista. Faz-me lembrar as vizinhanças de Tabuaço, daquele Douro que não aparece nos postais. Felizmente, libertada das construções, a estrada fica bastante mais interessante. Aqui, num recanto da encosta, às 4 da tarde ainda há uma considerável camada de geada na estrada, alva resistente da regelada noite anterior e que obrigava a cuidados redobrados na sua transposição.

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Reencontro mais à frente o sol que já ameaça deixar o vale, ao longo do quilómetro e meio da descida rápida mas cautelosa até novo atravessamento do Rio Bestança. Já sabia que ia pagar mais esta benesse com juros e a cobrança não se fez esperar: de imediato arranca a subida de 3 Km a 8% até aos arredores de Vila Boa de Cima, ao encontro do último troço desta nova via de acesso às Portas de Montemuro.

Vencida a subida, dou comigo numa encantadora e enganadora recta que se estende à minha frente. Com o cume já à vista, ser levado a fazer uma recta que desce ligeiramente traduz bem os requintes de malvadez que estão reservados aos incautos que se aventuram nas encostas do Montemuro. Lá ao fundo já descortino Bustelo e também Alhões, encaixados na zona dos 1000m de altitude. São últimos casarios antes da zona deserta no cume.

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Sou abordado por alguns locais que me perguntam se vou para aquelas bandas de cima, nesta bicicleta. Retorquem à minha resposta positiva com um "olhe que a estrada está toda em obras, até para os carros está uma %$!&£". Agradeço a preocupação sem no entanto entrar em grandes pormenores sobre como encontrar e pedalar neste tipo de piso é absolutamente trivial nos recantos por onde normalmente me meto. A estrada de facto está num estado lastimável, mas não deixa de ser perfeitamente ciclável pelos meus pergaminhos. A Lynskey aliás molda-se com impressionante desenvoltura ao asfalto rugoso e fendido, mesmo quando embalo na curta descida. É precisamente por isto que o titânio é único...

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Atravesso Bustelo interrogando-me se deveria parar para comer algo mais próximo a uma refeição caseira. Acabo por decidir que só irei dar o gosto ao dente nas Portas de Monteuro, por isso sigo em direcção a Alhões. Mais um bonito troço de estrada que serpenteia pela encosta, sempre com pendente ascendente, sempre com o Montemuro a olhar lá de cima. Pelo caminho um par de senhoras de idade respeitável demonstra o porquê da longevidade populacional por estes lados: muito ar puro e algumas caminhadas de vários quilómetros entre os dois povoados...

A falta de rotina de endurance nota-se agora de forma um pouco mais evidente. As pernas estão a responder mais lentamente e começam a acusar o acumulado de subida. Mas a resiliência está sempre lá e conhecendo-me bem, sei que tenho capacidade para continuar, bastando para isso ajustar o ritmo, baixando-o (ainda) mais um pouco.

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Estou visualmente bastante perto da Capela das Portas de Montemuro mas fisicamente parece existir um autêntico muro até lá. Este bloco final de 2 quilómetros torna-se cada vez mais inclinado, apressada que está a estrada para vencer esse degrau que ainda resta. E assim se coleccionam mais 150m de desnível positivo quase sem sair do sítio...

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Finda mais uma estirada de subida equivalente à Assunção (6.5km), estou de volta à R321 e parece que a terra rodou mais uma vez, inesperadamente, sobre o seu eixo. A inclinação acalma subitamente, benesse que é apanágio das estradas nacionais e recupero, assim, algum do vigor que vinha a perder desde Alhões. Em boa verdade subo a 6% mas são daqueles 6% que parecem planos quando comparados com as inclinações bem superiores que os precederam. A capela do Senhor do Amparo, nas Portas de Montemuro está agora ao alcance de poucas dezenas de pedaladas, pedaladas que agora se sucedem mais rapidamente. Alcanço-a finalmente, embora encare o referencial com um desinteresse que chega a ser até estranho. Mas a indiferença tem fácil explicação: não era este o meu objectivo hoje...

Vinha hoje globalmente mais focado no cume e, no imediato, na pequena estação de serviço empoleirada no pivot da montanha, único bastião de conforto nos dias agrestes no alto do Montemuro. Seja com a ameaça de neve, seja sob um calor tórrido, já ali encontrei impagáveis doses de ânimo alimentar para o que restava de algumas outras jornadas às cavalitas do gigante. Desta feita encontro, com surpresa, uma cara bonita e simpática a tomar conta da pequena fortaleza. Uma fêvera no pão com queijo e tomate para mim e 50 euros de "gazóil" para o senhor Alberto da Hiace Branca. Não parece de todo atrapalhada por tão díspares funções. Acredito que há que se ser desenrascado quando estamos a 1200m de altitude e a 4 quilómetros da aldeia mais próxima... O diálogo de circunstância é curto: Fico a saber que já nevou nos últimos dias e que há um ciclista de Matosinhos que passa por lá regularmente... e nisto o lanche já era.

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Despeço-me e arranco. O tempo já corria contra mim. Mas não era altura de vacilar. Tomado pela doença da montanha, que muitas vezes tolda o juízo dos aventureiros, avancei resoluto para a pequena rampa de alcatrão perpendicular à estrada...

Logo nos primeiros metros noto um certo desacerto sensorial. O meu olhómetro diz-me que estou numa rampa a 12% mas as pernas falam em 16! Ainda dou mais meia dúzia de pedaladas antes de perceber o que se estava a passar. Por segurança coloco sempre a talega quando paro nos cafés não vá algum espertinho tentar arrancar à pressa sem pedir autorização. Talvez ainda distraído com as incidências do lanche, esqueci-me de voltar ao meu prato favorito, o de sobremesa! Lá tive de me aguentar e fazer umas caretas até encontrar inércia e segurança para baixar para andamentos mais adequados à fadiga do momento.

Já sabia que o asfalto termina escassas centenas de metros mais à frente e preparo-me para atacar o estradão que se segue, com a convicção de que depois de cruzar a Mata de Albergaria e tendo em conta o que ainda me lembrava do Montemuro, esta seria apenas mais uma travessia de sterratto.

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Pois... certo... Estava prestes a descobrir que não seria assim tão linear. Entro no estradão disposto a não perder muito tempo até ao cume. Mas a convicção dura apenas uma escassa centena de metros. Logo ali à frente o sol que irradiava de trás das minhas costas projectava sombras invulgarmente longas no chão. A aproximação ao fenómeno revelou um cenário inesperado: quer tenha sido pelo efeito de lixiviação, potenciado pelas fortes chuvas dos últimos meses, quer tenha sido por deposição humana de novos inertes, o areão compactado e consolidado que antes revestia o estradão estava agora soterrado por algo muito pouco recomendável para se percorrer com pneus 25.

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Este núcleo do estradão revelou-se incrivelmente agreste. A gravilha inicial passou rapidamente a saibro e já era, por esta altura, autêntica brita. Eu geria a pedalada o melhor possível, a Lynskey aguentava como podia e as rodas... bem, as rodas viviam um verdadeiro inferno! Mais ou menos por esta altura eu já sabia perfeitamente como se sente um gato que fica preso numa máquina de lavar roupa posta em funcionamento...

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A situação não dava mostras de melhorar e, embora não questionasse a continuidade dos planos, questionava se os pneus resistiriam à minha firme convicção de atingir o cume. Só haveria uma forma de descobrir: pedalar os 900m que faltavam até ao maciço para depois fazer tudo no sentido inverso até às Portas de Montemuro e, pelo meio de tanto calhau, esperar o melhor.

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A menos de 500m do objectivo surge a desejada acalmia. O calibre do revestimento do estradão diminuí e os últimos metros são feitos a rolar num piso aceitável, exactamente como esperava que tivesse acontecido na totalidade do percurso.

Lá ao fundo erguia-se a recompensa! A visão pela qual esperei e pedalei o dia inteiro: Empoleirado num magote de blocos graníticos revelava-se o Vértice Geodésico do Montemuro! Era esta a grande subida do dia: 28Km num só bloco à pendente média de 4.5% e superando 1514 metros de desnível positivo pelo caminho. No total já levava 2600m de desnível positivo acumulado para uns parcos 68Km feitos desde que arrancara de Pala. Números interessantes que só elevam a qualidade intrínseca de mais esta conquista.

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Cansaço, calhaus, luz do dia a desvanecer-se... tudo ficou para segundo plano. O êxtase da conquista era total. Sou um verdadeiro privilegiado por ter aqui, ao alcance da vontade e geograficamente tão acessível, um lugar especial e único como este. Rodei sobre mim e sorri ao ser relembrado porque é que o Montemuro não é uma montanha normal como qualquer outra. Daqui de cima não há vista panorâmica a perder no horizonte nem abruptos vales escarpados que nos prendem a vista por quilómetros sem conta. Estamos "apenas" no meio de uma mesa, a 1320m de altitude, rodeados de pedregulhos graníticos até onde a vista alcança, com uns aerogeradores salpicados aqui e ali na paisagem.

A paragem no topo foi invulgarmente curta. Faço com facilidade paragens de até 20 minutos nos meus objectivos principais. Contemplação, fotografias e lanche... Mas desta vez não dispunha do luxo do tempo. O relógio continuava a sua implacável marcha e obrigava-me a absorver com sofreguidão o máximo de informação sensorial possível naqueles curtos minutos: tirei poucas fotografias e um par de auto-retratos, ao mesmo tempo que ia olhando em volta nos intervalos.

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Despeço-me sem a certeza de voltar em breve ou até de voltar de todo. Não sou de repetir conquistas embora a fugaz visita ao cume possa merecer segunda oportunidade de nova provação em troca de mais tempo de contemplação, quiçá num agradável dia de Verão e até com companhia.

Sair do cume é mais fácil de dizer do que fazer. Espera-me uma nova visita ao campo minado de brita que me separa da segurança relativa da estrada nacional. Não há muito a fazer senão tomar a decisão inadiável, dar uma (ou várias) pedaladas e seguir em frente. Como tal, assim fiz.

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O percurso de regresso é uma espécie de conta de somar. Além das dificuldades enfrentadas até ao momento, somos agora colocados num novo patamar de perigosidade. Pois bem, junte-se: um piso impróprio para consumo, um sol de frente, baixo e encandeante, misture-se a velocidade mais elevada própria de quem se desloca num plano inclinado, do topo para a base e temos uma mistura interessante para me entreter no par de quilómetros seguintes.

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Apesar de tudo, com mais ou menos elegância, fui-me desenvencilhando das partículas de grandes dimensões que insistiam em se quedar completamente imóveis na mesma trajectória que encolha, fosse ela qual fosse.

As últimas dezenas de metros, já com o asfalto à vista, são apimentados com um par de valentes sustos... Por duas vezes a serra impõe-me respeito e ameaça-me com uma ida ao tapete. Consigo, felizmente, manter o equilíbrio, talvez ajudado pelo vernáculo que desfio livremente em ambas as ocasiões. Paro para respirar fundo e retomo a dança entre os milhares de calhaus, tentando encontrar um pequeno carreiro seguro que, na realidade, não existe...

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Finalmente, quase 5 quilómetros depois de lá ter entrado, saio da máquina de lavar roupa. O pequeno escorrega de asfalto tira-me do atribulado cume e devolve-me à civilização. Estava de volta às Portas de Montemuro...

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Afago a Lynskey e agradeço que tenha tomado conta de mim. Estas aventuras, que têm por detrás um cérebro louco com vontade de descobrir coisas novas, só se materializam com sucesso porque somos uma dupla bem afinada. E no que toca a companheira de aventuras não poderia estar melhor entregue. Esta é a terceira grande provação seguida da destemida titânica, depois da subida à Senhora da Serra no Marão e do Estradão da Mata de Albergaria no Gerês. Nestes parcos mas coloridos 1000Km que percorremos juntos não a poupei ao pior do pior que já encontrei por estradas desertas e fascinantes. E a resposta foi sempre presente e afirmativa. Se a BMC já era uma bicicleta excepcional para aventuras, a Lynskey elevou a fasquia a um nível estratosférico. Sou, portanto, um privilegiado ciclo-descobridor que consegue pedalar por onde sonha, acompanhado pela sua bicicleta de sonho.

Feitos os agradecimentos, rodas no asfalto e aponto à descida. O piso parece agora autêntico veludo quando comparado cobertura crocante forrava o estradão que acabei de deixar e ainda bem que assim é. O vale à minha frente está agora completamente envolto nas trevas. Se as vertentes viradas à Freita ainda têm o privilégio de contar com um último banho de sol, no vale do Rio Bestança a sombra do gigante engolfa já tudo até onde a vista alcança, em ambas as encostas. Junto ao Rio Douro, ou pelo menos nessa direcção, já tremeluzem algumas luzes, sinal de que não há muito tempo a perder antes de arrancar com destino à base.

Coloco o buff e as luzes de presença, guardo os óculos e preparo-me para uns bons 45 minutos de descida contínua até Pias, pequeno casario no fundo do vale, já com o Douro aos pés. A talega e o carreto de 15 dentes não mais largarão o abraço da corrente até ao carro e é com esta relação que me lanço montanha abaixo. A R321 é uma estrada pouco sinuosa e que permite manter uma média de velocidade interessante, especialmente na primeira dezena de quilómetros. Não há muito que ver, nem pela descida em si, nem pela luz natural que se esgota rapidamente pelo que o enfoque agora é mesmo em chegar o mais rapidamente (com segurança!) lá abaixo.

O tal compromisso de escolher muita ou pouca roupa é posto à prova agora. Comigo costuma funcionar bem assim. Menos roupa a atrapalhar nas subidas e nas horas de calor, às expensas de um pouco mais de desconforto nas passagens em zonas de sombra ou, como no caso, nas descidas. A ausência de raios solares directos nota-se, como é óbvio, pela queda abrupta de temperatura. Ainda assim, só sinto algum desconforto nos braços. O colete cumpre inteiramente com a sua função e o tronco está agradavelmente quente e confortável, o que é meio caminho andado para o resto do corpo responder de igual forma. Os pés, esses estão quase tão confortáveis como num dia de primavera, cortesia das meias em lã de merino, um dos melhores investimentos dos últimos tempos.

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Os primeiros 8km são feitos num ápice, com a gravidade a ajudar a manter a média nos 50km/h. A luz de final de tarde ainda permite destrinçar o desfiar das suaves curvas com alguma facilidade. Mas nos arredores de Cinfães a estrada torna-se mais sinuosa e a responsabilidade manda que refreie um pouco o ritmo.

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Em Cinfães a luz solar decaiu já para um nível muito baixo e a iluminação pública dos arredores é bem-vinda para navegar no paralelo da cidade até voltar a encontrar o negro do asfalto umas largas centenas de metros adiante. A descida para Pias é feita já sem qualquer réstia de luz. O par de leds frontais pouco mais faz do que assegurar que ainda há asfalto a correr por debaixo da roda da frente. Guio-me pelo risco branco e pelo que me lembro da descida. Curva, contra-curva. Um poste de iluminação aqui, outro acolá. E agora, nenhum!

Termina a descida sem incidentes e estou novamente a atravessar o Rio Bestança, 4 horas depois de o ter feito no sentido inverso. Encontro-me agora a uma curta tirada de profundo bréu de chegar a Porto Antigo. Mantenho a pedalada certa e os sentidos alerta. Um ressalto na estrada ou um buraco que não veja a tempo e borro a pintura mesmo no final. Navego com cuidado por entre os recortes das obras de saneamento até chegar a uma zona com iluminação pública. Daqui para a frente estou bem entregue...

Rapidamente cruzo o Douro e completo o par de quilómetros que faltam para terminar a jornada. A partir de Ribadouro as águas acompanham-me ali, lado a lado. E esta última curva do percurso, junto ao ancoradouro de Pala, é fantástica porque traz com ela um dos panoramas mais bonitos do Douro, a jusante da Régua.

Imobilizo a Lynskey com 99.93km contabilizados. Não pedalo para cumprir calendário, por isso não me incomodo sequer em inventar os 70m que permitiram a passagem aos afamados "três dígitos". Já tinha conquistado os meus quatro dígitos no Montemuro e eram esses que me interessavam verdadeiramente.

Ventilação quente e um belo lanche para aconchegar o estômago aventureiro esperavam-me no veículo aparcado defronte da Capela da Pala. Entre duas dentadas num pão de centeio com queijo fresco e umas goladas de sumo de ananás mirava, satisfeito, os hipnotizantes reflexos da noite já instalada no Douro, agora mais calmo e tranquilo, aconchegado como sempre nas faldas do gigante.

Por estes tempos, a próxima aventura é sempre algo incerto, mas o importante é que esta já faz parte do meu caderno das conquistas em estradas desertas e fascinantes.

Felizardo eu!
 

angel@

Member
Impressionante duchene. É uma abordagem diferente da bicicleta de estrada, porque o mais comum é usa-la para treinar. Quase toda a gente que conheço que pedala, "anda a treinar".
Quero ler com atenção nesta pausa de Natal e inspirar-me para as minhas pedaladas.
Que em 2014, este tópico fique ainda mais rico de grandes aventuras e imagens fantasticas, por estradas(caminhos) onde poucos se atrevem a chegar.
 

rgccv

Member
Apenas e simplesmente BRUTAL, é sem dúvida um exemplo.

muitos parabéns pela força de vontade, determinação e paixão pela bicicleta. Inspirador sem dúvidas.

parabens
 

Figueiredo

Active Member
Faço das palavras da Angela as minhas já tenho leitura para a noite de consoada.

Obrigado pela partilha duchene e parabéns pela aventura, pelas fotos o relato promete... :)
 

osicran

New Member
.
Comecei a ler, mas cedo percebi que temos aqui um trabalho de grande fôlego e a exigir tempo e concentração qb. para poder ser apreciado em toda a sua (grandiosa) dimensão. De resto, à medida das reportagens (brilhantes!) que o André nos tem proporcionado, na proporção exacta das aventuras épicas que tem no curriculum.:p Tem de ficar para mais logo!:cool:
 
"Finalmente, quase 5 quilómetros depois de lá ter entrado, saio da máquina de lavar roupa"...
Fantastico, já me senti assim lá para os lados de Covas do Monte.....
Fantastico A. não há palavras para descrever essa aventura, realmente és um priveligiado... Muitos parabens!!!
 
Como ontem no meu grupo de amigos se disse: isto assemelha-se a um daqueles filmes bons, dos que não têm fim! :)

Parabéns por esta magnifica crónica e ousada aventura! A escrita é de uma fluidez que faz com que, por mais longa que seja, seja lida num piscar de olhos! ;)

Venham mais! :)
 

Armando

New Member
Boas Duchene

Li tudo o que escreveste com enorme satisfação e mais lia, se tu tivesses continuado a escrever.
Não sou de grandes leituras, nem mesmo livros de ex-ciclistas eu leio (li apenas a historia do maior de todos os tempos "Joaquim Agostinho"). Mas estas tuas aventuras sabem a "Natural", a coisas caseiras e isso deixa-me fascinado.
Não sinto inveja das tuas aventuras, pois uma cama do hospital ensinou-me, que não devemos invejar os outros por aquilo que tenham ou aparentem ter. Digo apenas, que um dia, ainda gostaria de participar numa aventura tua. Mas quase de certeza que não iria vê-la com a mesma beleza que tu retratas nas tuas cronicas. Tu sabes com palavras colorir o "fundo" mais cinzento que possa existir.

Boas pedaladas.

Boas Festas
 
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